terça-feira, 15 de outubro de 2013

Íntegra do discurso de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt

Escritor ataca questões como desigualdades sociais, impunidade, homofobia e outros problemas do País

08 de outubro de 2013 | 19h 15 (O Estadão)

Em seu discurso de abertura na Feira do Livro de Frankfurt, o escritor Luiz Ruffato fez uma pesada crítica as desigualdades sociais brasileiras. Entre outras questões, falou do passado escravagista, de violência, da população carcerária e de homofobia. Leia a íntegra do discurso a seguir:


O escritor Luiz Ruffato  - Divulgação
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O escritor Luiz Ruffato
"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."
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Entrevista com o escritor Luiz Ruffato:

Frankfurt (Alemanha) – Inicialmente, o “astro” brasileiro na Feira do Livro de Frankfurt – que homenageia o Brasil e será encerrada hoje – seria Paulo Coelho, que cancelou sua participação com críticas aos critérios de seleção de autores adotados pelo governo federal. Mas um mineiro de Cataguases, na Zona da Mata, acabou roubando a cena: Luiz Ruffato, em seu discurso contundente na abertura do evento, realizada na terça-feira. O autor de Eles eram muitos cavalos afirmou que o Brasil nasceu sob o genocídio, disse que estupros foram a base da democracia racial brasileira e destacou que impunidade e intolerância são regras no país. “Não queria me transformar na ‘vedete’ do evento dessa maneira, mas virei, de forma involuntária. A última coisa que queria é todo esse constrangimento. E o constrangimento era meu: de ter de falar, aqui na Alemanha, que o meu país tem todos esses problemas. Não é bom, não é agradável. Mas, enfim...”, afirmou ele em entrevista concedida na Estação Central de Frankfurt. Nada mais mineiro do que a conversa entre trens e um cafezinho num lugar em que Ruffato é apenas mais um dos milhares de transeuntes. A poucos metros dali, no espaço equivalente a 14 campos de futebol, está o pavilhão brasileiro da feira, o maior evento do mercado editorial do mundo. Depois de seu polêmico discurso, o escritor até evitou aparecer por lá. Na Alemanha desde o começo do mês, Ruffato tem agenda intensa: 62 eventos em 15 cidades. “É bacana esse reconhecimento aqui. Tenho livros traduzidos para o alemão e isso ajudou a me a dar alguma visibilidade. Sou mais divulgado aqui do que no Brasil”, afirma.

Você esperava toda essa reação a seu discurso?

Evidentemente, esperava que o discurso fosse provocar reações. Mas não que provocasse reações, digamos assim, pessoais. Isso para mim é realmente desagradável. Teve gente que falou que eu deveria ir embora do país, outros disseram que só mesmo o filho de uma lavadeira e de um pipoqueiro para falar uma bobagem dessas. Até a TFP (Tradição, Família e Propriedade) soltou aqui nota, em alemão, muito agressiva, falando que sou comunista, que estou incentivando a luta de classes. Como se tivesse de incentivar alguma coisa. Enfim, acho que, de certa maneira, infelizmente, tanto a esquerda quanto a direita estão desfavoráveis a mim.

Mas tem muita gente a favor também.

Sim. A maioria está a favor. Aqui na Alemanha, da parte dos alemães, tive total apoio. Dos meus colegas escritores, a maioria me apoia, mas sempre há os que não apoiam.

E essa história de que você chegou a ser agredido?

Não me agrediram, mas tentaram. Pessoas comuns. Brasileiros que estão aqui na feira e vieram me abordar de maneira extremamente agressiva. Não sabem a diferença entre Estado e governo. Falaram que eu estava falando mal do governo e fui pago pelo governo. Não fui pago pelo governo, mas pelo Estado. Se o governo tivesse me pagado, claro que não poderia falar mal. Esse espírito brasileiro de defender: ah, roupa suja lava-se em casa. Sim, lava em casa. Exatamente por isso somos o oitavo país em que as mulheres mais apanham no mundo.

Quando você escreveu esse discurso, imaginava que ele provocaria algum efeito de certa maneira? Ainda mais num evento cheio de holofotes.

Olha, falo isso há 10 anos no Brasil. Os meus livros falam isso. Mas como li o discurso fora do Brasil, na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, acabou tendo maior repercussão. Não falei mal do Brasil. Se alguém falar mal do Brasil perto de mim, brigo. Só dei um retrato não hipócrita do que é o nosso país.

Você não tem sido visto no pavilhão brasileiro da feira depois de toda essa história. Há até uma piada de bastidores dizendo que você se escondeu num bunker (abrigo subterrâneo antinuclear) para evitar esse assédio. Você evitou ir lá?
Tenho ido à feira, aos outros pavilhões, mas tenho evitado ir ao do Brasil para não criar constrangimentos ou algum tipo de problema. Mas, sabe, não entendo esses ataques pessoais. De minha parte não houve nenhum ataque a ninguém e a governo algum. E as reações boas foram muito boas. Mas as ruins também foram muito ruins.

Como você elaborou o discurso?

Esse discurso ampliado foi publicado num jornal suíço, de Zurique, dos três jornais mais importantes em língua alemã, o Neue Zürcher. É um artigo imenso, de quase duas páginas, escrito no começo do ano a pedido do jornal. Naquela época, nem sabia que faria esse discurso. Não havia sido convidado ainda. O editor me encomendou um ensaio sobre São Paulo. Depois, ele pediu para transformá-lo num ensaio sobre o Brasil. Nesse meio-tempo, surgiu o convite para abrir a feira. Então, percebi que o discurso que queria fazer estava ali naquele artigo. O que fiz foi pegar uma parte dele, reescrever, juntar algumas estatísticas mais atualizadas. Na verdade, ele foi publicado no sábado anterior à abertura da feira.

Você não ficou constrangido de fazer esse discurso ao lado do vice-presidente da República, Michel Temer, e da ministra da Cultura, Marta Suplicy?
De jeito nenhum. Até porque não estava criticando o governo. Muito pelo contrário, até defendo o governo. Tanto que em vários momentos cito os avanços registrados ao longo dos anos. Por isso, não poderia me sentir constrangido. E mesmo que estivesse criticando o governo, não teria problema algum. O meu papel é esse. O meu dever é esse.

Estamos vivendo uma certa regressão? Tudo está politicamente correto demais?

Estamos vivendo um momento muito curioso. É um momento importante em que, até por razões alheias à nossa vontade, as coisas estão ficando mais escancaradas. Nós, no Brasil, temos essa mania de ser hipócritas e ficar de nhe-nhe-nhem: todo mundo é bonitinho, e a gente nunca sabe exatamente com quem está falando. No meu caso, esse discurso serviu para mostrar quem pensa como eu, quem pensa diferente de mim, e respeito, e quem pensa diferente de mim e não respeito, aquelas pessoas que me agridem. Dessas não quero saber. Mas com quem pensa diferente de mim, e respeito, quero debater. Nesse sentido, foi importante tudo isso que aconteceu comigo.

Você soube que o Ziraldo passou mal.

Alguém me falou. E ainda teve uma pessoa maldosa que insinuou que ele tinha passado mal por minha culpa. Fiquei horrorizado com isso, nem o conheço pessoalmente. No dia do discurso, alguns autores ficaram berrando, mandando-me ir embora, mas nem ouvi direito. Naquele dia estava tão nervoso, tão ansioso, que nem as palmas cheguei a ouvir. Mas tive cinco minutos de aplausos. No auditório, eram umas duas mil pessoas. Tanto os brasileiros quanto os alemães me aplaudiram. (NR Depois do discurso de Luiz Ruffatto, Ziraldo mandou o colega calar a boca, gritando que se ele estava tão insatisfeito deveria se mudar do Brasil). 

E como o discurso repercutiu em sua terra, Cataguases? Alguém ligou para você?

Que nada. Em Cataguases, não sou nada (risos). Certamente, não tenho nenhuma dúvida de que é mais fácil ganhar o título de cidadão honorário de Hofheim, aqui na Alemanha, do que o de Cataguases, por exemplo. Isso porque sou filho da lavadeira e do pipoqueiro. Não sou filho da burguesia de Cataguases. Vou muito pouco à cidade, agora só tenho uma irmã morando lá. Nunca recebi um muito obrigado por falar da cidade. A ponte de Cataguases, inclusive, estampa as capas dos meus livros.

*A repórter viajou a convite do Governo de Minas

Imagem desconstruída


“A participação brasileira destruiu a imagem que se fazia aqui na Alemanha de um país colorido no qual ninguém trabalha, que é como 90% dos alemães viam o Brasil”, afirmou ontem Juergen Boos, diretor da Feira do Livro de Frankfurt, que homenageou o Brasil, em referência ao discurso polêmico do escritor Luiz Ruffato na abertura da feira. Boos reforçou: “A variedade de discursos mostra como o Brasil é uma sociedade dinâmica, que reinventa a si própria. A abertura foi extraordinária: muito literária e muito política”. Ontem, foi a foi a vez de o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro falar no evento, sem poupar críticas. Chamou os políticos de “população desordeira e parasitária” e Brasília de “um monumento a ideologias passadas” , arrancando aplausos. A boa notícia ficou por conta do cartunista Ziraldo, que completa 81 anos no dia 24. Ele recebeu alta do hospital em que estava internado na Alemanha, onde passou por um cateterismo de emergência.