quinta-feira, 14 de maio de 2009

A crise econômica mundial e a primavera dos zumbis

Carta Maior - 14/05/2009
Publicado em SinPermiso, em 07 de maio de 2009
Tradução: Katarina Peixoto


A despeito de alguns brotos primaveris exagerados e celebrados com um insensato otimismo digno do maior respeito, deveríamos nos preparar para outro inverno sombrio na economia global. Chegou a hora do plano B para reestruturar a banca. E de outra dose de remédios keynesianos. Pode ser que o fundo do poço esteja próximo e talvez seja alcançado no fim do ano. Mas isso não significa que a economia global se encontre em condições de se recuperar de maneira robusta no curto prazo. A análise é de Joseph Stiglitz.

Joseph Stiglitz

À medida que vai entrando a primavera nos EUA, os otimistas já vêm “brotos verdes” de recuperação da crise financeira e da recessão. O mundo está muito distinto da primavera passada, quando a administração Bush, uma vez mais, dizia ver “a luz no final do túnel”. As metáforas e as administrações mudaram. Não, pelo visto, o otimismo.

A boa notícia é que poderíamos estar no final de uma queda livre. A taxa do declive desacelerou. Pode ser que o fundo do poço esteja próximo e talvez seja alcançado no fim do ano. Mas isso não significa que a economia global se encontre em condições de se recuperar de maneira robusta no curto prazo. Chegar ao fundo não é razão para abandonar as drásticas medidas que tem sido tomadas para reviver a economia global.

Este desabamento é complexo: uma crise econômica combinada com uma crise financeira. Antes da crise, os endividados consumidores estadunidenses era o motor do crescimento global. Esse modelo quebrou e não se encontrará um substituto de um dia para o outro. Porque, ainda que os bancos norte-americanos gozem de boa saúde, o certo é que as riquezas domésticas sofreram danos devastadores e os norte-americanos hipotecavam e consumiam supondo que os preços de suas casas seguiriam subindo eternamente.

O colapso do crédito piorou as coisas, e as empresas, frente à alta dos custos creditícios e a mercados em baixa, responderam rapidamente cortando estoques. Os pedidos caíram abruptamente – proporcionalmente, muito mais do que caiu o PIB – e os países que dependiam de bens de investimento e duráveis (gastos que podem ser postergados) receberam um corretivo particularmente duro.

É provável que assistamos a uma recuperação de algumas das áreas que tocaram no fundo do poço entre fins de 2008 e começo deste ano. Porém, há que se atentar para os fundamentos da economia: nos EUA os preços dos bens imobiliários seguem caindo, milhões de moradias estão “debaixo d'água”, com hipotecas que custam mais do que o preço de mercado da casa e um desemprego em alta, com centenas de milhares chegando ao término do período de 39 semanas de cobertura do seguro-desemprego. Os estados se vêem forçados a despedir trabalhadores, à medida que desmoronam suas receitas.

O sistema bancário acaba de ser submetido a um teste para averiguar seu grau de capitalização – um teste de “stress” nada “estressante” - e alguns não puderam passar na prova. Mas, em vez de dar boas-vindas à ocasião de se recapitalizarem (talvez com ajuda pública), os bancos parecem preferir uma resposta à japonesa: nós vamos sair dessa de qualquer jeito.

Os bancos “zumbis” - mortos que ainda circulam entre os vivos – estão, conforme as imortais palavras de Ed Kane, “apostando na ressurreição”. Repetindo a débâcle de Saving&Loan nos anos 80, os bancos recorrem à contabilidade enganosa (que lhes permitiu, por exemplo, manter em seus livros ativos problemáticos sem lhes obrigar à depreciação, na ficção de que esses ativos poderia chegar a amadurecer e, de um modo ou de outro, sanarem-se). Ainda pior: permite-lhes tomar empréstimos baratos do Banco Central dos EUA respaldados por garantias mínimas para, simultaneamente, adotar posições de risco.

Alguns bancos declararam receitas no primeiro trimestre deste ano, a maioria oriundos da prestidigitação contábil e dos lucros nos negócios (leia-se: especulação). Mas isso não fará com que a economia volte a funcionar rapidamente. E, se as apostas não dão certo, o custo para o contribuinte norte-americano será ainda maior.

O governo estadunidense também está apostando em, mal ou bem, sair de todo jeito dessas circunstâncias: as medidas do Fed e os recursos garantidos pelo governo indicam que os bancos têm acesso a fundos de custo baixo e emprestam a taxas altas. Se nada desagradável acontecer – perdas em hipotecas, em imóveis comerciais, empréstimos comerciais e em cartões de crédito – os bancos podem só serem capazes de continuar suas atividades se não houver uma nova crise. Em poucos anos, os bancos serão recapitalizados e a economia retornará ao normal. Esse é o cenário otimista.

Contudo, as distintas experiências em todo o mundo sugerem que esse é um panorama arriscado. Ainda que os bancos estejam sanados, o processo de desacoplamento e a conseguinte perda de riqueza significam que, muito provavelmente, a economia será débil. E uma economia débil significa, muito provavelmente, perdas bancárias.

Os problemas não se limitam aos EUA. Outros países, como a Espanha, têm suas próprias crises imobiliárias. A Europa Oriental tem seus problemas, que repercutirão provavelmente em uns bancos europeu-ocidentais muito alavancados. Num mundo globalizado, os problemas numa parte do sistema reverberam em toda parte.

Em crises anteriores mais recentes, como a do Sudeste Asiático na década de 90, a recuperação foi rápida, porque os países afetados puderam fazer da exportação sua via para a sua prosperidade renovada. Mas agora se trata de uma queda sincrônica global. A América do Norte e a Europa não podem fazer da exportação a via de saída de suas turbulências.

A estabilização do sistema financeiro é uma condição necessária, mas não suficiente, para a recuperação. A estratégia norte-americana para estabilizar o sistema financeiro é custosa e injusta, porque passa pela recompensa a quem causou a catástrofe econômica. Porém, há uma alternativa que, em substância, significa jogar com as regras de uma economia normal de mercado: trocar dívidas por ações.

Com um truque assim, a confiança necessária ao sistema bancário regressaria e os empréstimos seriam reiniciados sem custos apenas para o contribuinte. Nem isso é particularmente complicado, nem é novidade. Obviamente, os portadores de obrigações e de bônus não gostam disso: prefeririam um presente do governo. Mas há inúmeras maneiras de usar o dinheiro público melhores que essa, inclusive uma nova rodada de estímulos.

Toda queda tem um final. A questão é a duração e a profundidade dessa queda. A despeito de alguns brotos primaveris, deveríamos nos preparar para outro inverno sombrio: chegou a hora do Plano B, para reestruturar a banca. E de outra dose de remédios keynesianos.

Joseph Stiglitz é professor de teoria econômica na Universidade Columbia, foi presidente do Council of Economic Advisers entre 1995-97 e ganhou o prêmio nobel de economia em 2001. Atualmente preside a Comissão de Expertos nomeada pelo Presidente da Assembléia Geral da ONU para o estudo de reformas no sistema monetário e financeiro internacional.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Elie Wiesel Sobreviveu à prisão em dois campos de concentração nazistas e perdeu todas as suas economias de meio século de trabalho, cerca de 13 milhões de dólares, pelas mãos do maior golpista de Wall Street, Bernie Madoff

Elie Wiesel tem 80 anos, 58 quilos e 1,73 metro de altura. É franzino. Diz estar cansado e sentir o peso da idade. Quando abre a boca, é um gigante que fala. Sobreviveu à prisão em dois campos de concentração nazistas. Perdeu a mãe e a irmã em Auschwitz. Viu o pai morrer em Buchenwald. Decidiu que sua missão seria não deixar morrer a verdade sobre o holocausto dos judeus. Escreveu cinquenta livros, tornou-se um humanista, um porta-voz da tolerância, e ganhou o Nobel da Paz em 1986. Há pouco, estava em Genebra, protestando contra a presença do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, na conferência sobre racismo da ONU. Passou por Nova York, onde mora (e onde perdeu todas as suas economias de meio século de trabalho, cerca de 13 milhões de dólares, pelas mãos do maior golpista de Wall Street, Bernie Madoff), e em seguida foi a Paris para dar mais uma palestra. Viajou feliz ao saber que Ahmadinejad cancelara sua visita ao Brasil.

revista VEJA

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Eric Hobsbawm: Socialismo fracassou, capitalismo quebrou: o que vem a seguir?

Economia| 15/04/2009 | Copyleft


A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. A prioridade não é o aumento do lucro e do consumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Isso significa iniciativa pública não baseada na busca de lucro. Decisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal. A análise é do historiador britânico Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm - The Guardian

Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políticos imaginam. O século XX já ficou para trás, mas ainda não aprendemos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a idéia básica que dominou a economia e a política no século passado desapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos era um modo de pensar as modernas economias industriais – em realidade todas as economias -, em termos de dois opostos mutuamente excludentes: capitalismo ou socialismo.

Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sistemas em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globalização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dúvida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anarquismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planificado e descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O futuro, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante de nós hoje, em particular para a gente de esquerda.

Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas de tipo soviético, não só por suas deficiências políticas, mas também pela crescente indolência e ineficiência de suas economias, ainda que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxitos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do capitalismo de livre mercado.

Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não recordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour, o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser qualificados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos.

A idéia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socialismo era desnecessário e que se podia confiar no sistema capitalista para fazer florescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma distribuição eqüitativa. Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização dificultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Trabalhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de 1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de uma atualização.

Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização econômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para a exportação (ao contrário do que fizeram Alemanha, França e Suíça) e apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos serviços financeiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lavadores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra e a economia britânica será provavelmente o mais catastrófico de todas as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também.

É possível afirmar que tudo isso já são águas passadas. Que somos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a nacionalização -, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No entanto, essa idéia sugere que sabemos o que fazer com as ferramentas. Mas não é assim.

Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as instituições financeiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída.

Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas. Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa privada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eficaz meio de fazer as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial? Não creio que tenham superado tudo isso.

No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais dos últimos 30 anos. Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico e a abundância que comporta são um meio, não um fim. Os fins são os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expectativas das pessoas.

Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós que a economia de Londres floresça. Mas a prova de fogo da enorme riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contribuído com 20 ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é nenhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos. Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restaurantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles mesmos em estrelas. Podem levar seus filhos à escola? A falta de escolas adequadas não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres podem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores de prêmios Nobel.

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso significa – ou deveria significar – iniciativa pública não baseada na busca de lucro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.

Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a crise do meio ambiente. Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, significará um deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pública, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico. E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.

Artigo publicado originalmente no jornal The Guardian

Tradução do inglês para o espanhol: S. Segui, integrante dos coletivos Tlaxcala, Rebelión e Cubadebate.

Tradução do espanhol para o português: Katarina Peixoto

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Bancos centrais sucumbem novamente aos atrativos das barras de ouro

07/05/2009

Javier Blas e Patti Waldmeir

Financial Times

Hoje (07/05) faz dez anos que o Tesouro do Reino Unido fez com que os preços do ouro despencassem ao anunciar que venderia uma parcela das suas reservas do metal.

Em uma questão de semanas, os preços caíram para US$ 250 a onça, o valor mais baixo em 22 anos, e, no decorrer de 1999, bancos centrais diversos, desde á Austrália até a Suíça e a Holanda anunciaram planos para vender uma grande parcela das suas reservas de ouro.

"Houve a sensação de que os países estavam competindo uns com os outros para vender ouro", diz Jonathan Spall, diretor de commodities do Barclays Capital, em Londres, e especialista em atividades com ouro dos bancos centrais.

Uma década depois, o quadro é diferente - as vendas na Europa diminuíram bastante e uma nova demanda está emergindo em outras regiões.

O mais nítido sinal da nova tendência é o anúncio de Pequim de que a China quase que dobrou secretamente as suas reservas de ouro para tornar-se o quinto maior proprietário mundial do metal. Bancos centrais em países como Rússia, Venezuela, México e Filipinas também estão comprando ouro, embora em pequena quantidade.

Enquanto isso, o preço da barra recuperou-se, e está sendo vendido a um recorde de US$ 900 a US$ 1.000, à medida que os temores quanto à debilidade do dólar norte-americano e à crise financeira fazem com que os investidores corram atrás da segurança proporcionada pelo metal.
Essa mudança é, em parte, resultado de um fim natural das grandes vendas consumadas pela Europa, afirma John Reade, estrategista especializado em metais preciosos da UBS, em Londres.

Mas isso também reflete um novo interesse de setores oficiais em outras áreas. "Está bem claro que alguns países emergentes, especialmente Rússia e China, desejam criar reservas de ouro", afirma Reade.

Essa mudança é importante para o mercado de ouro em duas frentes: o interesse proporcionou apoio psicológico e, o mais importante, reduziu uma fonte de oferta. No ano passado, os bancos centrais venderam 246 toneladas, que, embora representassem a menor quantidade comercializada em dez anos, equivaleram a 10% do ouro extraído de minas em todo o mundo.

Fontes da indústria de ouro chinesa acreditam que a China deverá continuar adquirindo o metal discretamente, a fim de diversificar as suas reservas estrangeiras. Não se sabe exatamente quais são os motivos pelos quais Pequim está comprando ouro, mas analistas da indústria estão apostando que haverá mais aquisições, já que a China não faz segredo do seu desejo de diversificar as suas reservas estrangeiras e distanciar-se do dólar. Embora o ouro seja avaliado em dólares, o preço do metal geralmente aumenta quando a moeda norte-americana se desvaloriza.

"Estou convicto de que eles continuarão comprando porque as reservas de ouro da China são muito pequenas em relação ao tamanho da economia do país e à significância cada vez maior da sua moeda", afirma Paul Atherley, diretor de gerenciamento da Leyshon Resources na China.

As atuais reservas de ouro da China representam apenas cerca de 1,6% das reservas estrangeiras totais do país, uma percentagem muito menor do que a média global de 10,5%.

A crise financeira também conferiu uma nova importância ao ouro, mesmo entre os bancos centrais europeus que venderam barras. Os bancos centrais austríacos dizem: "O aumento dos preços do ouro e a desvalorização simultânea do dólar estadunidense nos últimos anos demonstraram claramente como o ouro é um instrumento para a diversificação de carteiras de bancos centrais".

O Fortis Bank prevê que neste ano o mercado de ouro continuará seguindo o rumo para "a menor venda anual líquida por bancos centrais em uma década". No ano passado os bancos centrais da zona do euro venderam a menor quantidade de ouro desde 1999, e os especialistas preveem neste ano uma nova queda das vendas.

A proposta de venda de 400 toneladas de ouro do Fundo Monetário Internacional (FMI) poderia compensar essa queda, mas em 2008 os bancos centrais fora da Europa compraram mais do que venderam, e poderiam criar uma pressão para o aumento da demanda oficial.

A última ocasião em que o setor oficial foi um comprador líquido de ouro - embora pequeno - foi em 1988. Grandes aquisições oficiais de ouro - na casa das centenas de toneladas - não eram presenciadas desde 1965.

Philip Klapwijk, diretor do GFMS, a consultoria da área de metais preciosos, acredita que é "extremamente improvável" que os bancos centrais retornem ao mercado em grande escala, e prevê que nos próximos anos esses bancos possam oscilar entre pequenas vendas e aquisições líquidas. Começou uma nova era no mercado de ouro.

Estudo distribui a culpa pela crise subprime

O relato sobre o naufrágio do mercado de crédito imobiliário de segunda linha (suprime, em inglês) lembra a leitura de "Assassinato no Orient Express". Tal como no romance, onde todo mundo teve alguma participação no assassinato, a história do subprime americano envolve praticamente todos os centros de poder - como o governo Bush, o Fed (banco central dos EUA) e o Partido Democrata.


Consideremos Roland Arnall, fundador e CEO da Ameriquest Mortgage, companhia com sede na Califórnia que ganhou mais de US$ 80 bilhões com os financiamentos habitacionais de quitação incerta entre 2005 e 2007 e que se descreve como "patrocinadora do sonho americano".


A Ameriquest foi várias vezes responsabilizada por agências regulamentadoras e tribunais por práticas de financiamento abusivas. Em 2006, aceitou pagar uma multa de US$ 325 milhões, após a comprovação de que ludibriou mutuários, falsificou documentos e pressionou avaliadores a que inflassem os valores dos imóveis.


A empresa, que já fechou, doou US$ 263 mil para a campanha de George W Bush. Arnall, que morreu no ano passado, virou então embaixador de Bush na Holanda. Para manter as coisas equilibradas, sua empresa doou US$ 1,57 milhão ao Partido Democrata.


Entre 2005 e 2007, pico dos empréstimos subprime, as 25 maiores empresas de financiamento imobiliário ganharam quase US$ 1 trilhão em empréstimos concedidos a mais de 5 milhões de mutuários, muitos dos quais tiveram suas residências retomadas, diz o Center for Public Integrity (CPI), um organização de jornalistas ativistas baseada em Washington.


Esses empréstimos, muitos deles considerados predatórios, inflamaram o rastilho que levou ao colapso financeiro mundial. O Fed, que repetidamente recusou-se a tornar mais rigorosa a regulamentação dessas empresas não bancárias, por ser encarregado apenas da fiscalização direta de bancos, disse ao Congresso que seria excessivamente dispendioso estabelecer tal monitoração.


Em outubro passado, Alan Greenspan, ex-presidente Fed, disse a uma comissão do Congresso: "Aqueles de nós que confiávamos em que o auto-interesse das instituições financeiras protegeria o valor dos acionistas - em particular eu próprio -, estão em estado de choque ou descrença". Mas a resistência à regulamentação foi mais profunda do que as objeções ideológicas de Greenspan.


A investigação da CPI, que começou em setembro, revela que a maioria das financeiras gastou milhões de dólares em campanhas de lobby em Washington de meados até o fim da década de 90, em boa parte para evitar novas leis que tornaria mais rigorosas as restrições aos empréstimos subprime.


O setor financeiro gastou US$ 3,5 bilhões na década passada com lobbies em Washington e fez doações de campanha no montante de US$ 2,2 bilhões, diz o Center for Responsive Politics, um organismo fiscalizador independente.


O estudo da CPI mostra que, pelo menos 21 das 25 principais financeiras de contratos subprime, a maioria hoje falida, pertenciam ou eram fortemente financiadas pelos maiores beneficiários do pacote de socorro Troubled Asset Relief Funds (Tarp), como Citibank, Bank of America, Wells Fargo e JPMorgan - também os maiores doadores políticos nos EUA.


"Os maiores bancos americanos e europeus tornaram a bolha de empréstimos subprime possível financiando-a, para que pudessem colher os enormes benefícios da securitização e da venda de títulos lastreados nesses financiamentos", diz Bill Buzenberg, que conduziu a investigação. "Washington foi advertida repetidas vezes, na década passada, de que esses empréstimos de custo elevado criavam um risco sistêmico para a economia. É difícil acreditar que os grandes bancos não soubessem o que estava acontecendo ou as consequências que isso poderia trazer.


Uma das outras grandes financeiras foi a New Century Financial, acusada por investigadores, durante o processo de falência em 2007, de ter recorrido a práticas agressivas que elevaram os riscos para níveis perigosos e, em última instância, fatais. Seu maior respaldo financeiro veio do Goldman Sachs, que recebeu US$ 10 bilhões do pacote de ajuda Tarp.


Uma das poucas operadoras que continuam em atividade é a Wells Fargo Financial, pertencente ao banco de mesmo nome, que ganhou US$ 51 bilhões em empréstimos subprime entre 2005 e 2007 e gastou quase US$ 18 milhões em doações eleitorais e lobby junto a políticos, também neste caso quase igualmente entre democratas e republicanos. Barack Obama foi o maior beneficiário individual, com US$ 201 mil entrando como verba para sua campanha.


Segundo a CPI, todas as leis que ajudaram a criar a crise do subprime continuam em vigor. Desde o final dos anos 90, houve várias tentativas de endurecer a regulamentação mediante novas leis. Mas todas essas tentativas foi derrubada.


O relatório destaca o projeto de uma nova lei, patrocinada por Barney Frank, congressista democrata, que criaria cláusulas" tornando os securitizadores de crédito imobiliário responsáveis por abusos embutidos nos financiamentos originados. Se essa lei estivesse em vigor mais cedo, diz a CPI, a crise do subprime poderia nunca ter acontecido.


Fonte: Valor Econômico - Edward Luce/Financial Times - 06/05/09

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Basileia II: modernização irreversível ou inovação datada?

por CERQUEIRA/BACEN/DEPEC-MG


Basileia II, como se sabe, é o conjunto de normas para implantação de estrutura de capital, publicado pelo BIS em fev/2003, que formalizou a passagem da regulação tutelar para um método em que os bancos mensuram seus riscos por meio de sistemas internos de controle, alocando o capital suficiente para cobrir os riscos de crédito, de mercado e operacional. Permitiu-se tratamentos alternativos para cômputo do capital mínimo, desde o uso de categorias de riscos fornecidas por agências de “rating” até a permissão para construção de modelos proprietários. Em última instância, o Banco Central julga a abordagem adotada, validando ou não o modelo interno dos bancos, podendo intervir quando julgar necessário na política de administração de riscos. Em síntese, Basileia II procurou estabelecer requisitos de transparência – padronização nos procedimentos contábeis e na divulgação das informações –, propiciando adequada “disciplina pelo mercado” e incentivando o setor bancário a caminhar no sentido da “auto-regulação”, sem prejuízo da regulação governamental.



A “auto-regulação” advinda de Basileia II, embora não signifique independência de controle em relação ao Banco Central, permite grande grau de liberdade às IFs na atuação operacional. Muitos argumentam que, por conta da liberdade concedida, que foi excessiva, Basileia II pode ser corresponsabilizada pelo advento da crise financeira mundial. A “auto-regulação” foi, assim, a prática de uma ideologia de regulação que se mostrou perniciosa ao sistema econômico, permitindo alta alavancagem das IFs em papeis que estavam aparentemente com os riscos controlados pela securitização, a qual foi referendada pelos modelos estatísticos de mensuração do risco, base dos modelos de controle interno dos bancos.



Todo o sistema financeiro se entupiu de papeis que estavam matematica e estatiscamente com os riscos controlados, ou securitizados, mas quando o risco extrapolou os limites postos como improváveis, ninguém estava preparado para a situação de mergulho sem volta na crise. Descobriu-se (sic), então, que risco é algo passível de ser adequadamente mensurado somente em épocas de relativa estabilidade. Quando há choques de stress violentos, as salvaguardas do sistema, que deveriam funcionar como atenuadores, simplesmente não funcionam, ou não funcionaram.



O stress que ocorreu, originado aparentemente no sub-prime, não foi exógeno, mas endógeno aos próprios modelos de risco, como um câncer que cresceu sem ser notado, sendo esta a realidade mais grave da situação atual. O risco cresceu sem ser notado, a tal ponto que o sistema não conseguiu alocar capital suficiente para bancar os prejuízos, quando estes se fizeram evidentes.



Outros argumentam que a relação entre Basileia II e a crise, estabelecida por muitos analistas, incluindo o laureado Krugman, é totalmente espúria, pois o que ocorreu na abordagem de regulação por parte dos Bancos Centrais foi somente a evolução, ou modernização, necessária para lidar com o elevado grau de inovação financeira existente, que fazia qualquer tentativa de pré-classificar riscos ficar rapidamente ultrapassada. Basileia II não significou o abandono da fiscalização por parte do governo, sendo a outorga para construção de modelos proprietários de controle do risco uma inovação que se deu sem prejuízo da regulação. Assim, embora os bancos tenham de fato assumido grande liberdade de atuação, esta se deu dentro dos limites impostos pelo governo, que permaneceu como guardião do sistema. “Auto-regulação regulada pelo governo” seria a forma mais adequada de denominar o sistema, e não “auto-regulação” somente, que passa a ideia de ausência de regulação por parte do governo.



Neste debate, há de fundo uma questão puramente semântica. Perde-se muita energia na discussão de como denominar o processo de regulação das IFs cristalizado em Basileia II – se “auto-regulação”, “auto-regulação regulada pelo governo”, “autonomia relativa das IFs na mensuração de risco”, “independência operacional das IFs” –, perdendo-se o enfoque do debate de sua essência. O fato é que, na literatura econômica, usa-se frequentemente a nomenclatura "auto-regulação" na forma mais abreviada, talvez porque se pressupõe que a regulação de última instância, realizada pelos Bancos Centrais, é sempre existente, não sendo permitido no mundo moderno a abstenção de fiscalização pela Autoridade Monetária.



Mas, independentemente de como se denomina o processo, o sistema é perfeitamente identificado. A “auto-regulação”, sobrenome "regulada pelo governo", foi gerada nos EUA e GBR a partir de Reagan e Thatcher, sendo uma filosofia de supervisão financeira que implicou em um grande grau de liberdade e autonomia para as IFs em sua atuação. Foi o paradigma dominante nos últimos 30 anos, que Basileia II apenas ratificou, pois no período esta era uma ideologia praticamente inquestionável e consensual.



O fato é que, após a extraordinária atuação desde 1980, o sistema de “auto-regulação” está sendo colocado em xeque pela atual crise econômico-financeira mundial. Discute-se, agora, o abandono da outorga do controle de risco às IFs, não mais se permitindo que estas possam realizar, com grande grau de autonomia, o controle interno da atividade. Advoga-se o retorno da forma mais tradicional de atuação, tanto dos bancos como dos Bancos Centrais, com o privilegiamento das atividades mais fundamentais, para os bancos, e o retorno, para os Bancos Centrais, das auditorias contábeis, da verificação dos limites e proibições para aplicação de risco em diversos papeis, e várias outras formas tradicionais de atuação que estavam e estão em desuso, inclusive aqui no Brasil.



Há forte pressão para que haja o retorno de regulação mais efetiva e direta sobre os riscos que as IFs podem assumir, até mesmo proibindo-se ou limitando-se aplicações em determinados papeis. Não mais se deve permitir que os sistemas de controle interno dos bancos possam controlar os riscos por metodologia própria, apenas sendo regulados em última instância pelos Bancos Centrais. Esta forma de controle indireto se mostrou permissivo e incompatível com uma regulação eficiente, pelos imensos prejuízos causados até o momento.



Assim, por mais surpreendente que possa parecer, e enfrentando a resistência de muitos, o atual sistema de regulação financeira está sendo questionado, havendo pressão política para ser abandonado em favor de outro sistema, radicalmente diferente em filosofia, que poderia ser chamado de “regulação direta do governo”. Com o advento da crise, e a “descoberta” da magnitude dos prejuízos, um novo conjunto de regras para regulação do sistema financeiro, um Basileia III, deverá ser discutido. Esta necessidade já está sendo aventada pelo G20, com a liderança de Gordon Brown, e apoio da grande maioria dos países, com a resistência relativa apenas de alguns, com destaque para os EUA.