sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Mundo de olho nos ditadores

Editorial de O Diário de Pernambuco
Edição de sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011


A revolta que tem feito governos ditatoriais sucumbirem no Norte da África e no Oriente Médio é fato histórico tão relevante que suas possíveis consequências ainda não foram completamente observadas. Analisando-se apenas as trajetórias da vítima mais recente da "revolução", o egípcio Hosni Mubarak, e do alvo da vez, Muamar Kadafi, da Líbia, organismos de defesa dos direitos humanos e instituições multilaterais, como as Nações Unidas, poderiam obter uma relação substancial de crimes passíveis de uma longa e aprofundada investigação.

Os desdobramentos judiciais da derrocada dos ditadores já causa certa dor de cabeça para as novas autoridades egípcias e regimes aliados. Afinal, caso o movimento para levar Mubarak ao banco dos réus por conta das cerca de 370 mortes durante a revolta ganhe impulso, detalhes ainda mais nefastos sobre as manobras que mantiveram o ditador no poder durante três décadas - com o beneplácito de outros governos, como o norte-americano e o israelense - podem vir à tona e implicar militarese políticos egípcios e de outras nações. Julgá-lo no próprio Egito não seria possível neste momento, visto que não há um precedente no país para o indiciamento de um ex-governante.

Em relação a Kadafi, sua personalidade excêntrica e o envolvimento mais claro em ações terroristas tornaria ´menos constrangedor` um julgamento em tribunal internacional. É necessário recordar, porém, que o ditador líbio - acusado de participação no atentado, em 1988, contra o voo da Pam Am em Lockerbie (Escócia), no qual 270 pessoas morreram, e na explosão de uma bomba em uma boate em Berlim, dois anos antes - se reaproximou do Ocidente na virada do século, entregando suspeitos do ataque ao avião e concordando em eliminar armas de destruição em massa.

Desde então, Kadafi cristalizou amizades, ou, ao menos, somou aliados para tornar seu governo linha-dura legítimo aos olhos de mais líderes estrangeiros. Foi assim com o italiano Silvio Belusconi, com o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e, à época, com o americano George W. Bush.As sansões contra a Líbia caíram, o país voltou a comercializar com liberdade seu petróleo, e, aos poucos, ganhou parceiros em vários continentes. Nada disso deve impedir que as Nações Unidas e os outros organismos competentes apurem à exaustão fatos criminosos atribuídos aos governos hoje questionados.

Ainda não se sabe qual a verdadeira vontade política das grandes potências para aproveitar o momento e fortalecer mecanismos de direito internacional já estabelecidos para casos de crimes contra a humanidade. Lembremos evoluções recentes nesse sentido, como os julgamentos de Slobodan Milosevic, da antiga Iugoslávia, e Charles Taylor, da Libéria, no Tribunal Internacional de Haia, e a detenção de Augusto Pinochet na Europa. Diante desse novo panorama, os ditadores estabelecidos em diferentes partes do planeta devem estar tremendo, o que é um sintoma positivo, quando se busca afirmação dos princípios democráticos, como atestam os dramáticos episódios que têm por cenário duas estratégicas regiões, onde o petróleoé o elemento dominante no jogo dos interesses econômicos e políticos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

História feita pelo povo

19 de fevereiro de 2011 | 0h 00

MARIO VARGAS LLOSA - O Estado de S.Paulo

O movimento popular que sacudiu países como Tunísia, Egito e Iêmen e cujas réplicas chegaram a Argélia, Marrocos e Jordânia é o mais completo desmentido de quem, como Thomas Carlyle, acredita que "A história do mundo é a biografia dos grandes homens". Nenhum caudilho, grupo ou partido político pode se atribuir esse levante social sísmico que já decapitou as satrapias tunisiana de Ben Ali e egípcia de Hosni Mubarak, colocou à beira do colapso a iemenita de Ali Abdullah Saleh, e provoca calafrios nos governos dos países onde a onda convulsiva chegou mais fraca como na Síria, Jordânia, Argélia, Marrocos e Arábia Saudita.

É óbvio que ninguém podia prever o que ocorreu nas sociedades autoritárias árabes e que o mundo inteiro e, em especial, os analistas, a imprensa, as chancelarias e centros de estudos políticos ocidentais ficaram tão surpresos com a explosão sociopolítica árabe como ficaram com a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética e seus satélites.

Não é arbitrário aproximar os dois acontecimentos: os dois têm uma transcendência semelhante para as respectivas regiões e provocam precipitações e sequelas políticas para o restante do mundo. Que melhor prova de que a história não está escrita e ela pode tomar, de repente, direções imprevistas que escapam a todas as teorias que pretendem sujeitá-la a procedimentos lógicos? Dito isso, não é impossível discernir alguma racionalidade nesse movimento contagioso de protesto que se inicia, como numa história fantástica, com a autoimolação pelo fogo de um pobre e desesperado tunisiano do interior chamado Mohamed Bonazizi e com a rapidez do fogo que se espalha por todo o Oriente Médio.

Os países onde ele ocorreu sofriam com ditaduras de dezenas de anos, corruptas até a medula, cujos governantes, parentes próximos e clientelas oligárquicas haviam acumulado fortunas imensas, bem seguras no estrangeiro, enquanto a pobreza e o desemprego, assim como a falta de educação e saúde, mantinham enormes setores da população em níveis de mera subsistência e, às vezes, de fome. A corrupção generalizada e um sistema de favoritismo e privilégio fechavam à maioria da população todos os canais de ascensão econômica e social.

Mas esse estado de coisas que foi o de incontáveis países ao longo da história, jamais teria provocado o levante sem um fato determinante dos tempos modernos: a globalização. A revolução da informação foi esburacando por toda parte os rígidos sistemas de censura que os governos árabes haviam instalado para manter os povos que exploravam e saqueavam, na ignorância e no obscurantismo tradicionais. Hoje, porém, é muito difícil, quase impossível, um governo submeter a sociedade inteira às trevas midiáticas para manipulá-la e enganá-la como outrora.

A telefonia celular, a internet, os blogs, o Facebook, o Twitter, as redes internacionais de televisão e demais recursos da tecnologia audiovisual levam a todos os rincões do globo a realidade de nosso tempo e forçam comparações que por certo mostraram às massas árabes o anacronismo e barbárie dos regimes que sofriam e a distância que os separa dos países modernos.

E esses mesmos instrumentos da nova tecnologia permitiram que os manifestantes coordenassem ações e pudessem introduzir alguma ordem no que, num primeiro momento, pôde parecer uma caótica explosão de descontentamento anárquico. Não foi assim. Um dos traços mais surpreendentes da sublevação árabe foram os esforços dos manifestantes para tolher o vandalismo e sair da frente, como no Egito, dos valentões enviados pelo regime para desprestigiar o levante e intimidar a imprensa.

Solução negociada. A lentidão (para não dizer a covardia) com que os países ocidentais - sobretudo os da Europa - reagiram, vacilando primeiro ante o que ocorria e depois com vagas declarações de boas intenções a favor de uma solução negociada do conflito, em vez de apoiar os rebeldes, deve ter causado uma terrível decepção aos milhões de manifestantes que se lançaram às ruas nos países árabes pedindo "liberdade" e "democracia" e descobriram que os países livres os olhavam com receio e, por vezes, pânico. E constatar, entre outras coisas, que os partidos políticos de Mubarak e Ben Ali eram membros ativos das Internacional Socialista! Bela maneira de promover a democracia social e os direitos humanos no Oriente Médio.

O equívoco garrafal do Ocidente foi ver no movimento emancipador dos árabes um cavalo de Troia pelo qual o integrismo islâmico poderia se apossar de toda a região e o modelo iraniano - uma satrapia de fanáticos religiosos - se estenderia por todo o Oriente Médio. A verdade é que a explosão popular não foi dirigida pelos integristas e, até agora ao menos, estes não lideram o movimento emancipador nem pretendem fazê-lo. Eles parecem muito mais conscientes que as chancelarias ocidentais de que o que mobiliza os jovens de ambos os sexos tunisianos, egípcios, iemenitas e os demais não são a sharia e o desejo de que alguns clérigos fanáticos venham substituir os ditadorezinhos cleptomaníacos que querem derrubar. Precisaríamos ser cegos ou preconceituosos para não perceber que o motor secreto desse movimento é um instinto de liberdade e de modernização.

Naturalmente, não sabemos ainda o rumo que tomará essa rebelião e, claro, não se pode descartar a possibilidade de que, na confusão que ainda prevalece, o integrismo ou o Exército tratem de tirar partido. O que sabemos, porém, é que, em sua origem e primeiro desenvolvimento, esse movimento foi civil, não religioso, e claramente inspirado em ideais democráticos de liberdade política, liberdade de imprensa, eleições livres, luta contra a corrupção, justiça social, oportunidades para trabalhar e melhorar.

O Ocidente liberal e democrático deveria celebrar esse fato como uma extraordinária confirmação da vigência universal dos valores que representa a cultura da liberdade e dar todo seu apoio aos povos árabes neste momento de luta contra os tiranos. Não somente seria um ato de justiça como também uma maneira de assegurar a amizade e a colaboração com um futuro Oriente Médio livre e democrático.

Porque esta é agora uma possibilidade real. Até antes dessa rebelião popular, muitos de nós considerariam isso difícil. O que ocorreu no Irã e, de certa forma, no Iraque, justificava certo pessimismo com respeito à opção democrática no mundo árabe. Mas o que ocorreu nestas últimas semanas deveria ter varrido essas reticências e temores inspirados em preconceitos culturais e racistas. A liberdade não é um valor que só os países cultos e evoluídos apreciam.

Massas desinformadas, discriminadas e exploradas também podem, às vezes por caminhos tortuosos, descobrir que a liberdade não é um ente retórico desprovido de substância, mas uma chave mestra para sair do horror, um instrumento para construir uma sociedade onde homens e mulheres possam viver sem medo, dentro da legalidade e com oportunidades de progresso.

Ocorreu na Ásia, na América Latina, nos países que viveram submetidos ao jugo da União Soviética. E agora, por fim, está começando a ocorrer também nos países árabes com uma força e heroísmo extraordinários. Nossa obrigação é mostrar-lhes nossa solidariedade ativa, porque a transformação do Oriente Médio em uma terra de liberdade não beneficiará apenas a milhões de árabes, mas ao mundo inteiro em geral (incluindo, é claro, Israel, embora o governo extremista de Binyamin Netanyahu seja incapaz de compreendê-lo). / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É GANHADOR DO NOBEL DE LITERATURA


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Em 30 anos, o ditador Hosni Mubarak obteve fortuna de US$ 70 bilhões

Jornal "O Dia" em 16.02.2011

Ex-presidente do Egito depositou grande parte dos seus lucros em contas secretas
Cairo (Egito) - Se você ficou com algum tipo de pena porque o povo egípcio finalmente conseguiu enxotar o ditador Hosni Mubarak, que já estava há mais de 30 anos no poder, pode ficar tranquilo. A fortuna do ex-militar fica entre 40 e 70 bilhões de dólares, segundo o jornal britânico ‘The Guardian’. Boa parte do capital, como ocorre com as finanças de muitos tiranos, tem a origem no mínimo suspeita.

“Depois de 30 anos como presidente e mais tempo como um oficial militar, Mubarak teve acesso a transações de investimentos que geraram centenas de milhões em lucros. Muitos destes ganhos foram levados para fora do país e depositados em contas secretas de bancos ou investidos em casas de luxo e hotéis”, disse o jornal.
Um dos lugares preferenciais do ditador para investir seu dinheiro era a cidade de Londres, onde mantém várias propriedades, inclusive uma mansão de seis andares. Foi para lá que parte da família dele desembarcou no final de janeiro, quando o povo já protestava nas ruas. Os parentes de Mubarak chegaram à cidade num jato particular, com 92 bagagens.

MANSÕES NOS EUA

O egípcio também tem bens nos Estados Unidos. Segundo matéria do jornal árabe ‘Al Khabar’, o presidente que saiu do poder na sexta-feira tem propriedades em Manhattan, a região mais cara de Nova Iorque, e Berverly Hills, uma das mais valorizada de Los Angeles. Os filhos do ditador também são bilionários e ostentam propriedades luxuosas, como outra mansão também em Londres.

Em entrevista à rede americana ABC News, o cientista político da Universidade de Princeton, Amaney Jamal, comparou a fortuna de Mubarak às de outros líderes do Golfo Pérsico. “Houve muita corrupção e sufoco de recursos públicos para proveito pessoal”, explicou.

Suíça bloqueou possíveis fundos do político no país

Os relatos sobre a fortuna internacional de Mubarak motivaram, já na sexta-feira, dia em que o ditador renunciou, o bloqueio, pelo Conselho Federal suíço, dos possíveis fundos que o presidente egípcio e sua família tenham em bancos do país europeu.

O Executivo suíço publicou uma ordem pedindo aos bancos da nação que busquem e congelem os fundos do clã Mubarak, pouco depois da sua renúncia após 18 dias de grandes protestos populares.

“O Conselho Federal decidiu congelar com efeito imediato todos os fundos que eventualmente se encontrem na Suíça do antigo presidente egípcio e de seus familiares”, assinalou o órgão.

O documento explicou que a decisão tem o objetivo de evitar “qualquer risco de desvios de bens que pertencem ao povo egípcio”. A ministra de Exteriores suíça e presidente da Confederação, Micheline Calmy-Rey, explicou à imprensa suíça que o texto foi publicado às 17h30, ou seja, meia hora depois do anúncio da renúncia de Mubarak.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Dinheiro ilegal no exterior pode receber anistia

CIDADANIA FISCAL

POR LUDMILA SANTOS

O Projeto de Lei 354/09, conhecido como Projeto de Cidadania Fiscal, que concede vantagens fiscais para facilitar a repatriação de valores mantidos no exterior e não declarados à Receita, pode ser votado neste mês na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. De autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS), a proposta tem sido alvo de críticas daqueles que acreditam que, se aprovada, a propositura vai "deslavar" dinheiro de brasileiros sonegadores e beneficiar quem mandou para o exterior valores obtidos por meio do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, corrupção e crimes financeiros.
De acordo com o texto, pessoas físicas e jurídicas que tenham no exterior dinheiro ou bens de origem legal não declarados à Receita poderão incluir esses valores nas declarações de 2011, ano-base 2010, caso ele seja aprovado ainda este ano. O imposto será de 5% em cota única ou de 10%, se for parcelado, sobre o valor repatriado.
A proposta já recebeu parecer favorável do relator na Comissão de Constituição, Justiça (CCJ), o então senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), que agora chefia o Ministério da Previdência. Garibaldi apresentou 13 emendas ao texto original, entre as quais a que diz respeito ao tipo de crime a ser perdoado, caso o titular do patrimônio aceite as regras do retorno. A sugestão do relator é a de que a anistia alcance apenas o delito de evasão de divisas, um dos antecedentes para a caracterização do crime de lavagem de dinheiro, perdoado pela proposta original.
A emenda do relator também permite que a tributação seja reduzida pela metade se o contribuinte aplicar no mínimo 50% do valor dos bens e direitos em cotas de fundos de investimentos dirigidos a projetos de infraestrutura, habitação, agronegócio, inovação e pesquisa científica ou em bônus e títulos de dívida de empresas brasileiras no exterior.
No caso de pessoa jurídica, a regularização se dará pela incidência do IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), com alíquotas de 10% e 8%, respectivamente. Após passar pela Comissão de Assuntos Econômicos, em caráter terminativo, o projeto seguirá para a Câmara dos Deputados.
Origem do dinheiro
Apesar de o artigo 9º do projeto excluir do rol de delitos perdoados os crimes previstos na Lei 9.613/98, que dispõe sobre a lavagem ou a ocultação de bens, direitos e valores, a proposta é alvo de críticas por não esclarecer como será comprovada a origem do dinheiro nem como ele foi parar no exterior. “Fica extinta a punibilidade dos crimes com a simples declaração dos bens e valores, não havendo obrigação legal de se comprovar se os recursos são ou não lícitos. Dessa forma, o projeto acaba premiando aqueles que não estão seguindo a lei. Tem muito dinheiro não declarado fora do país proveniente de lavagem de dinheiro e do tráfico de drogas e de armas”, explicou o delegado da Polícia Federal Bruno Titz de Rezende, que atua na Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros em São Paulo.
Segundo o delegado, a maior parte dos recursos mantidos fora do país ilegalmente por brasileiros foi enviada para o exterior há muito tempo, por isso, muitos crimes de evasão de divisas podem estar prescritos. Mesmo assim, a manutenção de dinheiro não declarado no exterior é crime permanente, com prescrição contada a partir do momento em que os recursos retornam ao Brasil. “Ou seja, com a aprovação do projeto, o contribuinte não poderá mais responder pela manutenção ilegal do dinheiro. Haverá uma anistia penal e o ordenamento jurídico não mais permitirá a punição dos crimes dessa espécie cometidos antes da edição da lei”.
O delegado também destacou que o projeto propõe uma inversão de valores, uma vez que quem aufere renda no país e o declara paga uma alíquota maior do que aquele que manteve recursos ilegais no exterior. “As alíquotas do Imposto de Renda vão até 27,5%, mas para quem participar desse projeto de ‘cidadania fiscal’, a alíquota será de no máximo 10%. O projeto representa um retrocesso. Enquanto países, como os Estados Unidos, estão ampliando o combate aos crimes financeiros e tributários, o Brasil avalia a possibilidade de premiar quem não cumpre a lei”.
Preocupada com a possibilidade de tratamento benéfico ao dinheiro que vai para o exterior de forma criminosa, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) entregou uma nota técnica a todos os senadores. A entidade acredita que haverá grande dificuldade para discriminar a natureza e a origem do dinheiro repatriado. O presidente da Ajufe, juiz Gabriel Wedy, chegou a considerar que o projeto viola o princípio constitucional da moralidade e que o envio de dinheiro ao exterior é feito geralmente por organizações criminosas. "O dinheiro da corrupção na política brasileira é obviamente encaminhado de forma ilícita."
O promotor do Patrimônio Público e Social de São Paulo, Silvio Marques, também levantou a hipótese de a constitucionalidade da lei ser questionada, caso ela seja aprovada. "A legislação já permite que o contribuinte que sonegou não responda criminalmente, caso ele pague todos os tributos. Por outro lado, não acho que seja justo uma lei beneficiar quem não declarou seus bens no exterior em detrimento dos que cumpriram suas obrigações no Brasil, que não vão ter uma alíquota menor", explicou. "A proposta pode até ter um resultado inverso, uma vez que demonstra ser vantajoso o envio e a manutenção de dinheiro não declarado no exterior."
Ele avaliou ainda que é preciso deixar claro como será feita a repatriação dos recursos, para que não sejam beneficiados contribuintes que não declararam dinheiro de origem ilícita. "O projeto não pode abarcar esse tipo de bens. Seria a mesma coisa que lavar dinheiro com a chancela da lei."
Na vertente oposta, o advogado tributarista Raul Haidar considerou boa a intenção do PL 354/09, por viabilizar o retorno de dinheiro que foi para fora do país. "As críticas giram em torno da origem dos recursos, da possibilidade de eles serem fruto de atividade ilícita. É melhor que esse dinheiro fique aplicado no Brasil para pagar imposto e gerar emprego. Por outro lado, é difícil imaginar que um traficante vá trazer seu dinheiro para cá porque vai ser anistiado."
Ele afirmou ainda que, apesar de o projeto não beneficiar quem deixou o dinheiro no país, o contribuinte que não enviou seu dinheiro para o exterior acaba sendo favorecido de outra forma. "Os juros no mercado interno são bem maiores. Se ele não enviou o dinheiro para fora é porque não teve oportunidade. Mas ele saiu ganhando, de alguma forma."
Para o professor de Direito Tributário da USP, Heleno Torres, as críticas ao projeto são pouco consistentes, pois não consideram a lista de crimes que não serão perdoados, disposta no artigo 9º, muito menos os benefícios ao país. “Nos anos 80 e 90, a propriedade era depauperada pelo Estado, que não controlava a inflação e chegou a confiscar bens do contribuinte. Havia muita insegurança e por isso muitos brasileiros enviaram dinheiro para o exterior sem declará-lo. Com a anistia fiscal, é possível que possamos usar esses recursos em infraestrutura. E mesmo que se cobre uma alíquota mais baixa para esses contribuintes, os recursos passarão a gerar mais impostos se forem aplicados em melhorias para o país, que é a proposta do projeto de lei”.
Rebatendo as críticas sobre a possibilidade de beneficiar que não declarou seus bens, prejudicando aqueles que cumpriram suas obrigações fiscais, Torres afirma que deve ser avaliado o que é mais interessante para o país. “Cerca de R$ 300 bilhões poderão ser injetados na nossa economia. Só de imposto de renda, mesmo com a alíquota menor, serão arrecadados cerca de R$ 30 bilhões. O restante poderia ficar um período incubado, em fundos de investimento”. O professor também comparou o PL 354/09 ao Refis, muito difundido em todo o Brasil. “Ao se utilizar do Refis para recuperar tributos, o governo acaba por incentivar a concorrência desleal entre os contribuintes, com reduções das multas que podem chegar até 90% para quem está devendo ao Fisco. Isso também não é uma deslealdade com quem paga os impostos em dia?”, questionou.
Ele destacou, no entanto, que devem ser anistiados apenas os crimes vinculados a saída de dinheiro por omissão de informação. “Há inúmeras investigações em andamento sobre crimes financeiros. Se for verificado que alguém que está sendo investigado quer participar do programa, bloqueia-se os valores para que eles fiquem à disposição da Justiça”. Apesar de apoiar o projeto, Torres argumenta, que ele só dará certo, ou seja, só conseguirá incentivar o retorno dos recursos ao país, se o contribuinte sentir que há segurança institucional. “Se a polícia começar a abrir inquéritos, o Fisco começar a abrir procedimentos de cobrança de tributos, o contribuinte não vai se sentir seguro. É preciso que se tenha a garantia da anistia fiscal e se investigue apenas os crimes antecedentes”.

Investimento
O senador Delcídio Amaral, que presidiu a CPI dos Correios, defende o projeto como forma de viabilizar investimentos no país, principalmente quando o Brasil se prepara para sediar grandes eventos esportivos, como a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. "Cerca de US$ 50 bilhões de brasileiros circulam fora do país. Esse dinheiro pode ser investido em infraestrutura, habitação, agronegócio, ciência e tecnologia. Só faz crítica ao projeto quem não leu o texto."
Para preparar a proposta, o senador consultou normas de estímulos fiscais da Itália, Alemanha, Estados Unidos e Bélgica, entre outros. "A intenção é repatriar dinheiro obtido por meio de trabalho. Em virtude da incerteza jurídica provocada por planos de estabilização monetária fracassados, muitos brasileiros passaram a enviar seu dinheiro para o exterior para se proteger. Esses recursos que são alvo do projeto."
Amaral rebateu as críticas afirmando que os mecanismos para separação do dinheiro ilícito do dinheiro limpo serão estabelecidos com a regulamentação da norma, que será feita pela Comissão de Valores Mobiliários, pelo Conselho Monetário Nacional, pela Secretaria da Receita Federal, pelo Banco Central e pelo Conselho Federal de Contabilidade. "Uma das ideias é que se indique bancos de primeira linha para rastrear os recursos dos participantes e que haja a responsabilização, caso haja algum equívoco ou irregularidade na internacionalização dos recursos. O contribuinte vai ter de apresentar um história sobre o dinheiro."
Segundo o projeto, a regulamentação deverá ser feita no prazo de até 60 dias após a entrada em vigor da lei. Para o juiz convocado do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Henrique Abrão, até lá, o contribuinte poderá repatriar o dinheiro e se beneficiar da anistia. "Minhas dúvidas são em relação ao tempo de apuração da origem do dinheiro. Até que se identifique se a origem é lícita ou não, o contribuinte já trouxe o dinheiro para cá, teve a isenção, foi anistiado e até usou o dinheiro."
Na opinião do juiz, o projeto deveria separar o dinheiro que foi enviado ao exterior como simples aplicação daquele que é fruto de ato ilícito. "Se a origem é lícita, houve somente o crime tributário. Dessa forma, não haveria vantagens a quem participa do crime organizado, para traficantes, para pessoas que desviam dinheiro público. Mas, para isso, é necessária uma fiscalização e uma Polícia judiciária financeira que combata os crimes tributários e financeiros, mas essa situação vivida no Brasil é precária."
Ele destacou que, ao contrário de países como França, Itália e Alemanha, o Brasil não possui um departamento de Polícia financeira e a articulação com órgãos do exterior para identificar o repatriamento de dinheiro ilegal é insuficiente. Abrão defendeu a possibilidade do governo sequestrar os valores nos casos em que a origem dos recursos não for comprovada ou for ilícita. "Os paraísos fiscais guardam milhões de dólares oriundos do crime organizado."
No entanto, o promotor Silvio Marques destacou que o país possui sim expertise para investigar os crimes financeiros, por meio do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda que atua na investigação de casos de suspeita de lavagem de dinheiro e aplica penas administrativas. "A unidade de inteligência financeira possui meios para verificar a origem do dinheiro, inclusive no exterior, por meio de cooperação internacional."
Para ele, se o projeto for aprovado, o Coaf vai verificar a origem dos recursos repatriados e, no caso de suspeita de crime, fará uma representação ao Ministério Público para que o caso seja investigado, inclusive pela Justiça.
Clique aqui para ler o Projeto de Lei 354/09.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Brasil tem que agir com rapidez

Editorial de O Diário de Pernambuco
Edição de terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Brasil tem que agir com rapidez

Depois de superar os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil, a China vai se tornando cada vez mais predatória para a indústria brasileira. Em acelerado processo de desequilíbrio, as relações bilaterais terão a chance de um ponto de inflexão em abril, quando a presidente Dilma Rousseff visitará o gigante asiático. Mas as pressões internas exigem respostas rápidas, sem muito tempo para negociações diplomáticas, em geral de longa maturação e efeitos demorados.

Afinal, aproxima-se de 70% o número de indústrias verde-amarelas competidoras dos chineses no exterior (e elas representam 52% do parque industrial) que já perderam participação no mercado, sendo que 4% delas deixaram de exportar. Pesa a dificuldade de uma concorrência justa com produtos de um país pouco transparente, de Estado forte, que exerce pleno domínio sobre a economia, manipulando o valor da moeda e concedendo incentivos aos exportadores.

Não surpreende que, nessas condições, os chineses tenham conseguido expandir suas exportações de US$ 249 bilhões no início do novo milênio para US$ 1,2 trilhão em 2009, apesar da crise financeira internacional que eclodiu em 2008. Tão extraordinário desempenho até faz soar ingênua a afirmação de que a China é incipiente em práticas capitalistas, embora só há 10 anos o país tenha tido acesso à Organização Mundial do Comércio (OMC).

A propósito, a maior potência comercial do planeta obteve de Brasília, em 2004, o reconhecimento como economia de mercado, status ainda hoje não formalizado. Em Pequim, Dilma certamente terá de se equilibrar entre os apelos do colega Hu Jintao, para que oficialize o compromisso, e as pressões da indústria brasileira para que não conceda mais vantagem ao concorrente. Mais que isso, esses industriais buscam compensações imediatas, sobretudo para a forte subvalorização do iuan.

Não se pode esquecer de que, dadas as necessidades chinesas de alimentos e recursos naturais, é importante que ambos os lados evitem o confronto e busquem uma relação justa. Da parte brasileira, embora avantagem de pelo menos US$ 5 bilhões no atual intercâmbio, há que se considerar a hipótese de aumentar esse superavit com um parceiro que acumula reservas internacionais próximas dos US$ 3 trilhões. Mas, à parte a cautela no campo diplomático, o país não pode prescindir - desde logo - de usar todas as armas disponíveis para evitar a desindustrialização, fenômeno que pode se transformar numa grave ameaça ao próprio desenvolvimento do país.

E não falta o que fazer, inclusive internamente. O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, já admite a possibilidade de elevar as tarifas do Imposto de Importação de produtos que chegam ao país para fazer concorrência injusta e o governo estuda proposta de desoneração da contribuição patronal para o INSS no setor exportador. Precisamos, diante desse perigoso quadro, proteger as estruturas de produção industrial do país, em face do que ocorre hoje nas relações comerciais entre o Brasil e a China. Trata-se, aliás, de um assunto que deve ter prioridade na agenda do governo, sabendo-se que esse desequilíbrio nas relações entre os dois países vem se arrastando no curso dos últimos anos.