domingo, 6 de setembro de 2009

Batalhando a crise passada

Terça-Feira, 01 de Setembro de 2009

De O Estadão

Batalhando a crise passada

Ilan Goldfajn

Dizem que medidas econômicas servem para evitar a crise passada, não
necessariamente a futura. A crise passada é revista, analisada e
discutida. Novas medidas são propostas para evitar que a crise
aconteça novamente. Evita-se repetir os erros anteriores. Mas se
desconhecem os problemas futuros. Há quem considere as crises
inevitáveis, pois ocorrem em áreas não afetadas anteriormente, nas
quais os anticorpos dos agentes econômicos não foram criados.

A crise financeira internacional está passando - pelo menos essa é a
sensação atual -, com o aparente fim da recessão global (na Ásia e no
Brasil, estima-se que o fim da recessão tenha ocorrido no segundo
trimestre; nos EUA e na Europa, neste trimestre). Mas há muito a
corrigir. Não se podem repetir os erros do passado. Houve excesso de
alavancagem (incorreu-se em muito risco), falhas regulatórias (pouco
controle/fiscalização) e excesso de confiança macroeconômica (os
bancos centrais no mundo acreditaram demais no seu próprio sucesso de
baixa inflação com crescimento elevado). Há um longo e tortuoso
caminho a percorrer para sanear o sistema financeiro internacional.
Tão longo que provavelmente deve afetar a capacidade de crescimento
das economias centrais nos próximos anos.

Uma pergunta relevante para avaliar o avanço recente é se as medidas
propostas até agora, se adotadas de forma diligente, seriam
suficientes para evitar a crise que ocorreu (*). Não me refiro à crise
futura, com o seu componente natural de imprevisibilidade, mas à crise
que acabamos de sofrer. Em particular, a proposta de reforma do
sistema financeiro pelo governo americano resolveria os problemas que
levaram à crise recente?

Nos EUA houve uma alavancagem excessiva e a criação do chamado sistema
bancário "sombra". Medidas regulatórias atuais não impediriam
alavancagem excessiva do sistema financeiro. Houve a utilização de
balanços de terceiros e de contabilidade criativa. A utilização de
balanços de terceiros ocorreu com a securitização das hipotecas, que
permitiu a distribuição desses ativos para os balanços de terceiros -
como fundos de investimento e outros -, cuja restrição de capital é
menor ou até inexistente. Para isso, houve a criação de veículos
especiais para carregar ativos, os structured investment vehicles
(SIV). Dessa forma, criou-se o sistema bancário "sombra".

A proposta de reforma financeira nos EUA adota uma série de medidas
com o objetivo de ampliar a restrição de capital e flexibilizar a
adaptação da legislação às inovações do sistema financeiro. As
principais medidas propostas são: 1) Aumento à restrição de capital
(em particular de instituições sistemicamente relevantes); 2) registro
de todos os fundos na Securities and Exchange Commission (SEC); 3)
mudança nas regras contábeis de consolidação das instituições
financeiras relevantes; 4) regulação do mercado balcão de derivativos;
e 5) consolidação da regulamentação das instituições financeiras
sistêmicas (aquelas que representam risco sistêmico se falirem) sob a
égide do Federal Reserve (Fed).

Essas medidas têm a intenção de restringir a alavancagem excessiva no
sistema financeiro. A mudança na consolidação contábil das
instituições financeiras relevantes, por exemplo, reduziria a
capacidade de elas se alavancarem via ativos fora do balanço. O
aumento do capital legal dos bancos implicaria que apenas uma perda
maior do que a ocorrida gerasse uma crise. A consolidação da
regulamentação das instituições sistêmicas sob a direção do Fed vai na
direção de evitar espaços não cobertos e diminuir conflitos entre as
diferentes agência regulatórias, além de permitir uma atuação
tempestiva das autoridades.

Em suma, a reforma financeira nos EUA cobre alguns vácuos
regulatórios, reduz alguns conflitos de interesse e, principalmente,
coloca a responsabilidade de controle e regulação financeira das
instituições relevantes sob a guarda do Fed. Mas se essas mudanças
tivessem ocorrido no passado, a bolha nos preços de ativos teria sido
evitada?

Infelizmente, a resposta é negativa. Parece pouco provável que a
consolidação da regulação no Fed, por exemplo, gerasse uma atitude
diferente da verificada, haja vista a confiança na autorregulação dos
mercados financeiros. É difícil imaginar que antes da crise, no apogeu
da visão do sucesso macroeconômico (o Great Moderation: baixa inflação
e alto crescimento) e financeiro (autorregulação e inovações), o
regulador (mesmo o Fed com maiores poderes) tomasse uma atitude que
restringisse a alavancagem. Inovações financeiras eram consideradas
puramente avanços tecnológicos (e o são, mas sua difusão sem
regulamentação adequada traz riscos ao sistema). Há diversos exemplos
de medidas de desregulamentação financeira (e/ou de resistência a mais
regulamentação financeira), que ocorreram nos anos anteriores à crise,
com a anuência implícita do Fed. Um exemplo foi a resistência do Fed
(sob a liderança de Alan Greenspan) à proposta de regular minimamente
o mercado de credit default swap (CDS).

Enfim, o sistema financeiro provavelmente continuaria sujeito a riscos
parecidos com os que desembocaram na crise passada. Isso significa que
a crise poderá repetir-se da forma como aconteceu recentemente? Pouco
provável, dada a mudança aparente no conjunto de crenças existentes. A
grande moderação macroeconômica do passado é hoje questionada, assim
como o excesso de risco em que se incorreu nos investimentos. Mas se o
fim da recessão der lugar à complacência com os erros do passado, o
excesso de otimismo pode voltar e as mudanças nas regras não serão
suficientes para evitar crises futuras, nem mesmo as aparentadas com a
crise anterior.

Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco

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