quarta-feira, 6 de maio de 2009

Basileia II: modernização irreversível ou inovação datada?

por CERQUEIRA/BACEN/DEPEC-MG


Basileia II, como se sabe, é o conjunto de normas para implantação de estrutura de capital, publicado pelo BIS em fev/2003, que formalizou a passagem da regulação tutelar para um método em que os bancos mensuram seus riscos por meio de sistemas internos de controle, alocando o capital suficiente para cobrir os riscos de crédito, de mercado e operacional. Permitiu-se tratamentos alternativos para cômputo do capital mínimo, desde o uso de categorias de riscos fornecidas por agências de “rating” até a permissão para construção de modelos proprietários. Em última instância, o Banco Central julga a abordagem adotada, validando ou não o modelo interno dos bancos, podendo intervir quando julgar necessário na política de administração de riscos. Em síntese, Basileia II procurou estabelecer requisitos de transparência – padronização nos procedimentos contábeis e na divulgação das informações –, propiciando adequada “disciplina pelo mercado” e incentivando o setor bancário a caminhar no sentido da “auto-regulação”, sem prejuízo da regulação governamental.



A “auto-regulação” advinda de Basileia II, embora não signifique independência de controle em relação ao Banco Central, permite grande grau de liberdade às IFs na atuação operacional. Muitos argumentam que, por conta da liberdade concedida, que foi excessiva, Basileia II pode ser corresponsabilizada pelo advento da crise financeira mundial. A “auto-regulação” foi, assim, a prática de uma ideologia de regulação que se mostrou perniciosa ao sistema econômico, permitindo alta alavancagem das IFs em papeis que estavam aparentemente com os riscos controlados pela securitização, a qual foi referendada pelos modelos estatísticos de mensuração do risco, base dos modelos de controle interno dos bancos.



Todo o sistema financeiro se entupiu de papeis que estavam matematica e estatiscamente com os riscos controlados, ou securitizados, mas quando o risco extrapolou os limites postos como improváveis, ninguém estava preparado para a situação de mergulho sem volta na crise. Descobriu-se (sic), então, que risco é algo passível de ser adequadamente mensurado somente em épocas de relativa estabilidade. Quando há choques de stress violentos, as salvaguardas do sistema, que deveriam funcionar como atenuadores, simplesmente não funcionam, ou não funcionaram.



O stress que ocorreu, originado aparentemente no sub-prime, não foi exógeno, mas endógeno aos próprios modelos de risco, como um câncer que cresceu sem ser notado, sendo esta a realidade mais grave da situação atual. O risco cresceu sem ser notado, a tal ponto que o sistema não conseguiu alocar capital suficiente para bancar os prejuízos, quando estes se fizeram evidentes.



Outros argumentam que a relação entre Basileia II e a crise, estabelecida por muitos analistas, incluindo o laureado Krugman, é totalmente espúria, pois o que ocorreu na abordagem de regulação por parte dos Bancos Centrais foi somente a evolução, ou modernização, necessária para lidar com o elevado grau de inovação financeira existente, que fazia qualquer tentativa de pré-classificar riscos ficar rapidamente ultrapassada. Basileia II não significou o abandono da fiscalização por parte do governo, sendo a outorga para construção de modelos proprietários de controle do risco uma inovação que se deu sem prejuízo da regulação. Assim, embora os bancos tenham de fato assumido grande liberdade de atuação, esta se deu dentro dos limites impostos pelo governo, que permaneceu como guardião do sistema. “Auto-regulação regulada pelo governo” seria a forma mais adequada de denominar o sistema, e não “auto-regulação” somente, que passa a ideia de ausência de regulação por parte do governo.



Neste debate, há de fundo uma questão puramente semântica. Perde-se muita energia na discussão de como denominar o processo de regulação das IFs cristalizado em Basileia II – se “auto-regulação”, “auto-regulação regulada pelo governo”, “autonomia relativa das IFs na mensuração de risco”, “independência operacional das IFs” –, perdendo-se o enfoque do debate de sua essência. O fato é que, na literatura econômica, usa-se frequentemente a nomenclatura "auto-regulação" na forma mais abreviada, talvez porque se pressupõe que a regulação de última instância, realizada pelos Bancos Centrais, é sempre existente, não sendo permitido no mundo moderno a abstenção de fiscalização pela Autoridade Monetária.



Mas, independentemente de como se denomina o processo, o sistema é perfeitamente identificado. A “auto-regulação”, sobrenome "regulada pelo governo", foi gerada nos EUA e GBR a partir de Reagan e Thatcher, sendo uma filosofia de supervisão financeira que implicou em um grande grau de liberdade e autonomia para as IFs em sua atuação. Foi o paradigma dominante nos últimos 30 anos, que Basileia II apenas ratificou, pois no período esta era uma ideologia praticamente inquestionável e consensual.



O fato é que, após a extraordinária atuação desde 1980, o sistema de “auto-regulação” está sendo colocado em xeque pela atual crise econômico-financeira mundial. Discute-se, agora, o abandono da outorga do controle de risco às IFs, não mais se permitindo que estas possam realizar, com grande grau de autonomia, o controle interno da atividade. Advoga-se o retorno da forma mais tradicional de atuação, tanto dos bancos como dos Bancos Centrais, com o privilegiamento das atividades mais fundamentais, para os bancos, e o retorno, para os Bancos Centrais, das auditorias contábeis, da verificação dos limites e proibições para aplicação de risco em diversos papeis, e várias outras formas tradicionais de atuação que estavam e estão em desuso, inclusive aqui no Brasil.



Há forte pressão para que haja o retorno de regulação mais efetiva e direta sobre os riscos que as IFs podem assumir, até mesmo proibindo-se ou limitando-se aplicações em determinados papeis. Não mais se deve permitir que os sistemas de controle interno dos bancos possam controlar os riscos por metodologia própria, apenas sendo regulados em última instância pelos Bancos Centrais. Esta forma de controle indireto se mostrou permissivo e incompatível com uma regulação eficiente, pelos imensos prejuízos causados até o momento.



Assim, por mais surpreendente que possa parecer, e enfrentando a resistência de muitos, o atual sistema de regulação financeira está sendo questionado, havendo pressão política para ser abandonado em favor de outro sistema, radicalmente diferente em filosofia, que poderia ser chamado de “regulação direta do governo”. Com o advento da crise, e a “descoberta” da magnitude dos prejuízos, um novo conjunto de regras para regulação do sistema financeiro, um Basileia III, deverá ser discutido. Esta necessidade já está sendo aventada pelo G20, com a liderança de Gordon Brown, e apoio da grande maioria dos países, com a resistência relativa apenas de alguns, com destaque para os EUA.

Nenhum comentário: