quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O sustentável peso do trabalho

Autor(es): Marcelo Neri
Valor Econômico - 03/11/2009

As análises macroeconômicas são agregadas, na própria definição do campo de estudo da disciplina fundada por Keynes em meio à grande depressão dos anos 30. Isto é, olha-se para o conjunto de pessoas numa dada sociedade, não importando a região de moradia, estrato econômico, composição de fontes de renda, ou outros atributos individuais (sexo, idade etc.). Tudo se passa como se tratássemos de um agente hermafrodito, de meia idade, de classe média.

Em várias situações a ficção macroeconômica se mostra adequada para não nos perdemos nos detalhes desnecessários, mas em outras situações o diabo mora justamente nos detalhes omitidos. Em particular, num país de dimensões continentais e desigualdade amazônica que se torna internacionalmente conhecido pela proliferação de novas e velhas políticas de rendas como o Brasil, a análise agregada esconde mais do que revela.

A injeção de demanda é o ponto-chave no pós-crise, mas estamos olhando a economia de maneira muito agregada. Na medida em que cada lado da fronteira de nossa Belíndia tem propensões diferenciadas ao gasto, há implicações macroeconômicas dependendo do "quem é quem" nos avanços e retrocessos observados. Sem enxergar os detalhes dos grupos que emergem e dos que afundam, seja na descoberta de nichos de mercado, desenho de redes de proteção social aos pobres e/ou aos perdedores. Do ponto de vista das empresas produtoras, não se trata só de saber o que gera nova demanda, mas onde a oferta encontra (ou desencontra) essa demanda.

Esta análise simples, do tipo Lego, de remontar os pedaços das rendas dos diversos tipos brasileiros, pode ajudar um a descobrir os porquês das mudanças. Em particular, no período de expansão do bolso dos brasileiros em vigor até setembro de 2008 há ainda falta de visão clara sobre pelo menos três pontos: 1) Quem mudou?; 2) O que mudou?; 3) Onde mudou?. Vamos ao quebra-cabeça.

1) Quem mudou? As mudanças no interior da economia, quem perde e quem ganha em termos de estrato de renda (E, D, C e AB). A nova classe média brasileira se tornou um ativo macroeconômico crucial para compensar a queda na exportação de nossos produtos como fruto da retração global. Entre 2003 e 2008, 32 milhões de pessoas, ou meia França, ascenderam às classes ABC, sendo 6,7 milhões só no ano passado. Também no período 2003 a 2008, houve uma redução de 43,03% da pobreza - o que corresponde à saída de 19,3 milhões de pessoas da miséria. Nesse período, a taxa de crescimento de renda é decrescente à medida que caminhamos ao topo da distribuição indo dos 58,8% real per capita dos 10% mais pobres aos 21,11% dos 10% mais ricos. No período de 2001 a 2008 esse placar era ainda mais dilatado: 72% vs. 11,1%, respectivamente.

2) O que mudou? Qual parcela de renda cresceu mais, antes ou fruto da crise e das ações contra ela: trabalho, bolsa família, aposentadoria ou nenhuma das alternativas acima. Neste período de boom, a renda média de todas as fontes cresceu 5,26% ao ano contra 5,13% da renda do trabalho. Os resultados apontam que, embora tenha havido aumento forte da renda, derivada de programas sociais e aposentadorias ligadas ao mínimo, a parcela devida ao trabalho fica próxima ao expressivo crescimento de renda desta fase de boom. Complementarmente, traduzimos a riqueza de dados "pnadianos" sobre estoques de ativos, agrupados sob estas duas perspectivas, a do consumidor e a do produtor, o que nos termos da fábula de La Fontaine permitiria separar os lados cigarras e formigas dos filhos deste solo.

A pesquisa www.fgv.br/cps/fc cria dois índices sintéticos. O primeiro de potencial de consumo baseado em acesso a bens duráveis, a serviços públicos e moradia e o segundo sobre o lado do produtor onde identificamos o potencial de geração de renda familiar de forma a captar a sustentabilidade das rendas percebidas pela inserção produtiva e nível educacional de diferentes membros do domicílio, investimentos em capital físico (previdência pública e privada; uso de tecnologia de informação e comunicação), capital social e capital humano (frequência dos filhos em escolas públicas e privadas) etc.

A nossa surpresa é que o índice do consumidor aumentou 14,98% entre 2003 e 2008 contra 28,62% do índice do produtor. Ou seja, o brasileiro pode ser na foto ainda mais cigarra que formiga mas estamos sofrendo gradual metamorfose em direção às formigas. Este ponto pode variar muito de lugar para lugar, dos aparentes formigueiros paulistas até as esperadas cigarras do sertão nordestino. O que nos leva à nossa última e talvez mais importante dimensão de análise.

3) Onde Mudou? Em que regiões, sejam macrorregiões, estados, capitais, tipos de cidades, a economia doméstica avançou e onde regrediu? E a geografia da pobreza, mudou? Mudou por quê? Se olharmos para o Nordeste o ganho de renda do trabalho per capita real médio do período 2003 a 2008 foi de 7,3% ao ano o que contraria a ideia de que o aumento de renda do brasileiro em geral e do nordestino em particular deve-se apenas ao "assistencialismo oficial". Talvez haja mais sustentabilidade na expansão nordestina do que nas ideias daqueles que a imaginam como a de uma nova economia sem produção.

Finalmente, qual é a capital do Bolsa Família e demais programas? Macapá, onde 3,25% da renda do município advêm desses programas. Quem é o campeão de geração de trabalho e renda? É Palmas no Tocantins, com 88,3% da renda vindo da labuta diária. E a capital dos aposentados? Rio de Janeiro, cujas rendas correspondem a 28,8% do bolso do carioca, a mais alta proporção de todas 27 capitais. O Rio, curiosamente ocupa a lanterna das capitais tanto no quesito renda do trabalho como na do Bolsa Família. Sei que estou sendo bairrista, mas o site da pesquisa: www.fgv.br/cps/atlas permite a cada um, por meio de bancos de dados interativos, realizar o cruzamento para responder suas perguntas-chaves. O convite está feito!

Marcelo Côrtes Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e professor da EPGE/FGV, é autor de "Retratos da Deficiência", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Ensaios sociais".

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