quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Déficit dos EUA foi capital de giro do mundo. Agora, cobram a alma dos ajudados pela sua perversão

Correio Braziliense – Brasil S/A - Demônio de Fausto - 09/11/2010

Demônio de Fausto

Por Antonio Machado
machado@cidadebiz.com.br



Sem a perspectiva da história dificilmente se entenderá as razões da mão pesada do governo Barack Obama para repor os EUA no caminho do crescimento econômico anterior à recessão, iniciada ao final de 2007 e oficialmente encerrada, mas ainda a um ritmo meia boca.



O instrumento das emissões de moeda acionado pelo Federal Reserve (Fed) é muito maior e possante do que avaliam os críticos, para os quais o apelo ao gasto público, como o ministro Guido Mantega diz que vai contrapor na cúpula dos chefes de governo do Grupo dos 20 (G-20), quinta e sexta-feira, em Seul, seria muito mais eficaz.



Menos ruinoso para as demais economias, certamente. Só que Obama ficou de mãos atadas, com a maioria da Câmara tomada nas eleições parlamentares pelos republicanos. O recurso ao déficit fiscal, já superesgarçado, ou ao aumento de impostos os republicanos não vão aprovar. Restaram as emissões, solução que parece mais fraca.



Há um acalorado debate sobre a eficácia de medida tão extrema. O argumento é que o volume de emissões anunciado pelo Fed – US$ 600 bilhões até final do próximo semestre, cerca de US$ 75 bilhões/mês - seria insuficiente para ativar o crédito e, assim, a demanda nos EUA, mas é o que bastaria para valorizar as demais moedas.



A economia global entrará em pane, se todos os governos tentarem defender a moeda nacional para anular a queda relativa do dólar. É o que o governo Lula vem tentando sem sucesso. O risco existe e é esperado, se, como tudo indica, os governos fracassem em Seul.



Antes de sua ação unilateral, o governo dos EUA ofereceu ao G-20 um acordo pelo qual os países com superávits, como China e Japão, turbinariam o mercado interno, o que reduziria suas exportações e, na mão contrária, demandaria importações dos EUA.



Nenhum governo topou. A aposta é que os EUA não teriam cacife para dobrar o braço dos parceiros. E tudo ficará pior, renascendo a inflação em meio à estagnação da economia americana e muito mais desemprego.



Nenhum dos cenários previstos é favorável à economia mundial. Mas também é arriscado cogitar os EUA batidos e na lona. Embora haja o risco, os problemas poderão ser muito maiores para os outros.



Emissões de US$ 6 tri



Os críticos não sacaram o tamanho da encrenca. À primeira vista, as emissões planejadas pelo Fed parecem incapazes de fazer cócegas a uma economia de US$ 14 trilhões, na qual o consumo corresponde a 70% do movimento. Só que US$ 600 bilhões injetados sob a forma de recompra de papéis federais carregados pela banca equivalem, dado o multiplicador bancário (10 para 1), a um potencial de crédito de US$ 6 trilhões. A dinheirama tomará o destino que a banca quiser.



Versão menos fatalista



Sem confiança do consumidor já extremamente endividado e temeroso do futuro devido ao desemprego elevado, o crédito não flui. Agrava a situação que tal cenário não incentiva as empresas a investir. A dinheirama, assim, vazaria para outros países.



Alega-se que os EUA perderam a fé em si mesmos. É o que acontece aos poderosos que se acomodam. Mas há outra versão menos fatalista e mais pragmática.



Os EUA estariam provando do próprio veneno que receitaram a todos os países em desenvolvimento endividados. Como o Brasil depois da indigestão do crescimento acelerado até fim dos anos 1970, os EUA acumularam dívidas e sucatearam indústrias. O que nós fizemos?



Fabricamos uma recessão, que implicou desemprego e baixa do custo salarial, liberando produção para exportar. A crise chegou até nós pela escassez de dólares para pagar importações e dívidas. Dólares eles têm. Basta emitir. É basicamente o que difere os dois casos.



Embasamento histórico



O embasamento histórico ao que estão fazendo, dada a recusa do G-20 em colaborar, remonta ao acordo de Bretton Woods, que lançou as bases do atual ordenamento monetário do mundo.

Os EUA desvirtuaram o dólar em seu próprio interesse ao usá-lo para bancar os déficits fiscais e externos. Mas sem isso jamais teria havido globalização.



Os déficits criaram a liquidez que funcionou como capital de giro do desenvolvimento global. Primeiro, para reconstrução da Europa e Japão arrasados pela guerra. Depois, dos atuais emergentes. Os EUA cobram agora a alma dos que se beneficiaram de sua perversão.



A crise mais profunda



Como potência vitoriosa na 2ª Guerra, maior economia e mecenas da reconstrução do pós-guerra, os EUA impuseram a paz em seus termos, mas não foi por isso que adveio a globalização dos anos de 1970 em diante. O entrelaçamento do comércio global ao mercado financeiro dependia da liquidez do dólar, que os EUA emitiam com parcimônia, até porque não havia grandes déficits fiscais e comerciais.



A relação foi quebrada durante a Guerra do Vietnã, financiada por emissões. O Federal Reserve não conseguiu manter a paridade do dólar ao ouro, como definido em Bretton Woods, até que em 1971 ela foi eliminada. O dólar se transformou numa moeda qualquer.



Depois vieram os choques do petróleo, espécie de imposto sobre os países importadores. Não houve uma depressão global porque a banca reciclou os petrodólares como empréstimos, que quebraram adiante o mundo em desenvolvimento. A dívida passou da banca para o mercado financeiro, convertida em papéis transacionáveis.



O dólar foi peça chave em cada um desses eventos, que acabaram por “financeirizar” o conjunto da economia real. Essa é a crise mais profunda.

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